quinta-feira, 21 de maio de 2015

Teimosia Mercurial



Prof. Roney Signorini
Assessor e Consultor Educacional
roney.signorini@superig.com.br

O gênio de Millor Fernandes era insuperável para sua época, como criativo e inventivo, via tudo sempre com grande simplicidade. Lembrando-se de um episódio, tentando garfar uma ervilha, o que parecia impossível pois ela sempre fugia-lhe pelo prato, mais tarde considerou que se tratava de uma ervilha mercurial. E é absolutamente certo. Quando o termômetro é quebrado e lhe escorre o mercúrio ninguém consegue pegar a gota.

Insistir em traçar um paralelo de análises na educação superior entre a pública e a privada, considerando uma e desconsiderando a outra vai-se além da miopia teimosa, é a cegueira.

Nos últimos anos começa a se generalizar entre os pesquisadores uma preocupação crescente com o significado e os efeitos do ensino privado ao lado do público.

No Brasil, as universidades constituíram, até a década de 1980, uma parte pequena do ensino superior. Além de instituições confessionais e de escolas superiores sem fins lucrativos criadas por elites locais, proliferou, já a partir da década de 1960, um outro tipo de estabelecimento: não-confessional, não-universitário e organizado como empresa que, explícita ou disfarçadamente, tinha como objeto principal o lucro, portanto, um negócio, como qualquer outro.

O que já estava claro e permeou o debate sobre o ensino superior foi o caráter preocupante da expansão desse tipo de estabelecimento privado. Assim, o ensino superior começou a produzir um combate dos intelectuais e estudantes ao ensino privado e em defesa da universidade pública. Ou seja, a beligerância cega nunca quis enxergar que a ascensão desse tipo de instituição surge senão pela fraqueza do Estado, a desídia com os (seus)próprios estabelecimentos públicos, com o absurdo de alunos considerados “excedentes” sem vagas nas escolas públicas, o aumento exagerado do corporativismo se enclausurando nos muros das universidades públicas e com ares de dominadores e posseiros intolerantes: a academia que não soma nem multiplica mas subtrai porque não agrega, não colabora, não coopera e claro, não ajuda.

Educação, um rio com duas margens distintas: a pública e a privada correndo em única direção mas a primeira dominada pela intenção separatista.
É necessário registrar que entre 1889 e 1918 foram criadas 56 novas escolas superiores, em sua maioria privadas. Data dessa época, portanto, a diversificação do sistema que marca até hoje o ensino superior brasileiro: instituições públicas e leigas, federais ou estaduais, ao lado de instituições privadas, confessionais ou não.

A oposição entre ensino público e privado, em sua origem, sempre esteve fortemente permeada pela oposição público versus confessional.
Em 1933, quando se iniciam as primeiras estatísticas educacionais, os dados indicam que as instituições privadas respondiam por cerca de 44% das matrículas e por 60% dos estabelecimentos de ensino superior. O conjunto do sistema, entretanto, era ainda de proporções muito modestas. O total do alunado compreendia apenas 33.723 estudantes. Durante o período Vargas, que se estendeu até 1945, o sistema cresceu lentamente. Nesse último ano, contava com cerca de 42 mil alunos, 48% dos quais no setor privado.

Como se vê, a pretensa hegemonia do setor público  educacional não vai além do papel e os números garantindo as realidades, como exemplo, em 1960 as públicas somavam 59.624 (56%) alunos enquanto que as privadas 42.067(44%) mas, a partir daí a expansão caminhou célere chegando ao ano 2001 com 939.225(31%) nas públicas e 2.091.529(69%) nas privadas.

No Brasil, as universidades públicas gratuitas foram o alvo preferido de uma constante reivindicação de ampliação de vagas. De fato, com o aumento da demanda, acumulou-se nelas um contingente de candidatos excedentes, constituído por alunos aprovados nos exames vestibulares que não podiam ser admitidos por falta de vagas. A admissão desses excedentes tornou-se uma importante reivindicação do movimento estudantil. Essa pressão começou a dar frutos já no início da década de 1960, quando o crescimento das matrículas se acelerou.

O setor privado, cuja participação oscilava em torno dos 45% até 1965, atingiu 50% em 1970, e, a partir dessa época, alcançou e manteve uma participação superior a 60%. Quando chegamos ao final da década de 1970, o sistema de ensino superior havia mudado muito e o desenvolvimento dos setores público e privado havia se dado em linhas divergentes.

Direcionados pelo objetivo de ampliar a lucratividade do empreendimento, pela captação da demanda disponível, o setor privado passou a ser governado pelo mercado. Criou-se, desta forma, o setor que corresponde ao que Geiger denomina “mass private sector”, ao lado de um setor público que se orientou no sentido de atender a uma demanda mais qualificada (Geiger, 1986).

A expansão do segmento setor privado, que podemos chamar de empresarial, se orientou para a satisfação dos componentes mais imediatos da demanda social, que consiste na obtenção do diploma. Essa tendência é reforçada por uma longa tradição cartorial da sociedade brasileira, que associa diploma de ensino superior ao acesso a uma profissão regulamentada e assegura a seus portadores nichos privilegiados no mercado de trabalho. O sistema privado dividiu-se internamente entre um segmento comunitário ou confessional não lucrativo — que se assemelhava ao setor público — e um segmento empresarial.

Nos anos 1980, o setor privado se orientou no sentido de ampliar o tamanho dos estabelecimentos por processos de fusão e incorporação de estabelecimentos menores, criando federações de escolas e procurando em seguida transformá-las em universidades, para ganhar autonomia e fugir dos controles do CFE. O Conselho Federal de Educação foi inundado com pedidos dessa natureza, e a atividade dos lobbies junto ao Conselho se intensificou. De 1975 a 1985, o número de universidades privadas permaneceu estável — vinte ao todo. Entretanto, cresceram, e muito, as federações de faculdades ou faculdades integradas. Essa nova forma de organização é reconhecida oficialmente apenas nas estatísticas de 1980, que indicam dez estabelecimentos desse tipo. Cinco anos depois, eram 58 e, em 1990, atingiram 74. O aumento do número de universidades privadas, por outro lado, é um fenômeno da segunda metade da década. Entre 1985 e 1990, o crescimento é de 145%, passando de vinte a 49.

No final dos anos 1980, um novo desvio no setor privado. Até essa época, as universidades privadas eram predominantemente confessionais ou comunitárias, sem fins lucrativos, e tendiam a se assemelhar às universidades públicas. O movimento de expansão das universidades particulares, que ocorre a partir de 1985, se dá graças à pressão do setor voltado para o ensino de massa, de finalidades lucrativas, com pouco interesse pelo desenvolvimento das atividades de pesquisa e de qualificação do corpo docente, atribuição das públicas.

A democratização do ensino, com a absorção da demanda de caráter mais popular, continuou na dependência crescente do ensino privado de massa, papel que lhe é reservado por excelência. O imediatismo do setor, por outro lado, não promoveu uma renovação de ensino que possa corrigir as deficiências da escolaridade anterior desse público e oferecer uma formação adequada às exigências crescentes do mercado de trabalho.

A margem esquerda desse rio da educação carece de novo traçado,  uma reforma administrativa do ensino público e da relação entre as instituições e o Estado de modo a quebrar o rígido centralismo burocrático e promover uma racionalização necessária na utilização de recursos disponíveis. O problema reside na ausência de autonomia administrativa e financeira para as universidades públicas. Sem essa autonomia, é impossível alterar a natureza da gestão e estabelecer um sistema de financiamento que associe o volume de recursos a algum critério de desempenho. Grande problema que felizmente não afeta as instituições privadas.

Nenhum comentário: